SlowMotion
curated by Miguel Wandschneider
May 28 > June 9, 2001
Galeria da ESTGAD
Caldas da Rainha, Portugal
exhibited works:
Miguel Soares (1970) estudou Design de Equipamento na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, entre 1989 e 1995. Paralelamente, entre 1989 e 1991, frequentou o curso de fotografia da escola Ar.Co, em Lisboa.
Desta formação descolam dois traços salientes da sua actividade artística durante a primeira metade da década de 90: por um lado, o recurso à fotografia como meio de expressão, mais precisamente, a apropriação e manipulação de imagens fotográficas preexistentes; por outro, a utilização de referências e convenções do campo do design de equipamento, tomado primeiro como referente e mais tarde do ponto de vista da concepção formal das peças. Contudo, desde muito cedo que a sua actividade se processou fora de parâmetros disciplinares delimitados e estáveis.
Encontramos um exemplo claro daquela dupla vinculação logo na série de oito dípticos fotográficos que o artista reuniu na sua segunda exposição individual (”Miguel Soares 1992″, Galeria Monumental, Lisboa, 1992): em cada um destes dípticos, a imagem a cores do interior de uma habitação dos anos 60, mobilada e equipada segundo arquétipos datados de funcionalidade, conforto e apuro estético, surgia justaposta à imagem em tom sépia de um veículo futurista dos anos 50 e 60 (automóvel, hélice, avião, nave espacial), símbolo do desejo eufórico e das crescentes possibilidades de mobilidade no território e de conquista do espaço.
Pouco tempo depois, a referência directa ao design de equipamento deslocou-se do interior do plano da imagem fotográfica para a exterioridade material das próprias obras. Corresponde a esta fase um conjunto de esculturas com aparência e funcionalidade de mobiliário (estantes, aparadores, arquivo, cama, móvel de televisor), que incorporavam uma caixa de luz com a fotografia de uma paisagem terrestre sobrevoada por um ovni (”Miguel Soares 1994″, Galeria Monumental, 1994). Podendo ser entendidas ao mesmo tempo como móveis e como esculturas (evocativas da tradição minimalista), como objectos utilitários e como obras de arte, essas peças concretizavam, sem alarido e com eficácia, a inserção da arte na vida quotidiana. Eram também uma proposta irónica de evasão à dimensão utilitária dos objectos e às rotinas do quotidiano através de um imaginário de ficção científica.
Os exemplos avançados indiciam uma terceira característica do trabalho de Miguel Soares, que se manteve em grande evidência até hoje: o fascínio pelas utopias futuristas, as inovações tecnológicas e o universo iconográfico da ficção científica. Podemos ser colocados perante a crença nas virtudes emancipadoras do progresso tecnológico, como nas fotografias de cunho retro-futurista atrás descritas, ou os efeitos destrutivos e incontrolados desse mesmo progresso, como em SpaceJunk, animação em três dimensões transferida para vídeo e para imagens sobre papel, actualmente em preparação. Todavia, é sempre pelo lado da imagem e do imaginário que aquele fascínio se declara, indiferente a discursos de apologia ou crítica das sociedades contemporâneas.
A partir de 1995, a fotografia como técnica e o design de equipamento como campo de referências perderam centralidade, mas não foram completamente abandonados, na obra de Miguel Soares. As convenções do design ressurgem mesmo, com renovada eficácia, em trabalhos posteriores. É exemplo Celulight, série de candeeiros construídos a partir da reciclagem de embalagens de telemóveis, com que o artista retomou o questionamento anterior acerca da identidade e do estatuto de obras de arte que existem, simultaneamente, como objectos utilitários (”Design Inserts”, “Experimenta Design”, Gare Marítima de Alcântara, Lisboa, 1999).
Parte significativa da sua actividade, desde meados dos anos 90, tomou a forma de esculturas e instalações, com forte carácter interactivo, que representam personagens, ambientes, situações e objectos pertencentes a hipotéticos mundos de ficção científica. Estas obras simulam com frequência realidades “high tech” a partir de materiais e dispositivos tecnológicos muito simples, fazendo conviver uma estranheza do ponto de vista formal com um sentido de verosimilhança e plausibilidade na recriação de universos de ficção científica. Esses materiais e dispositivos incluem, por exemplo, lâmpadas, sensores psicadélicos, detectores de movimento, chapas zincadas, relva plástica, espelhos de acrílico, altifalantes, antenas parabólicas, ou um ponteiro laser.
Vejamos alguns exemplos. Vr trooper (1996) mostra, dentro de uma cápsula cilíndrica que irrompe pelo chão, um extra-terrestre ou robot, iluminado por uma luz vermelha, que responde ao som ambiente efectuando movimentos circulares sobre si próprio (”Greenhouse Display”, Estufa Fria, Lisboa, 1996; “Miguel Soares 1990-1996″, Edifício da Associação Nacional de Jovens Empresários, Faro, 1996; e “321m2″, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 2001). Em Heaven’s Gate (1997), instalação inspirada no suicídio colectivo dos membros de uma seita religiosa por ocasião da passagem de um cometa, vários corpos cobertos por tecido roxo e estendidos sobre prateleiras, de tempos a tempos varridos pelo sopro de ventoinhas, supostamente a dormir ou mortos, realizam uma viagem em direcção a outro mundo (”Jamba”, Sala do Veado, Museu de História Natural, Lisboa, 1997; “ARCO 98″, Madrid, 1998; e “321m2″). Beep (1998) representa um disco voador, uma sonda ou um posto de observação, que reage aos sons que produz e aos que capta à sua volta com efeitos luminosos e um movimento circular de reconhecimento do espaço em redor (”Observatório”, Canal Isabel II, Madrid, 1998). Exemplo derradeiro, entre outros possíveis, é Gustavo (1999), um saco amarelo cheio de lixo que emite um feixe luminoso de cor vermelha, enquanto realiza um movimento, deixando inscrito na parede o desenho desse movimento (”Espaço 1999″, Sala do Veado, 1999; e “Miguel Soares 2000″, Galeria Monumental, 2000).
É neste período que Miguel Soares começa a usar o vídeo como meio de projecção de imagens animadas, nuns casos retiradas a jogos de computador, noutros casos criadas em três dimensões a partir de elementos gráficos disponíveis na internet. Com essas peças, o imaginário de ficção científica tão característico da sua obra abriu-se ao universo dos jogos de computador e ao dos desenhos animados futuristas. Em algumas obras recentes, o artista documenta de modo “voyeurista”, e desvia poeticamente, situações reais violentas que ele próprio filmou. Umas e outras diversificam as estratégias de apropriação que, no início, se exerciam sobretudo no domínio da fotografia, tendo passado a incidir sobre imagens e sons de jogos de computador, elementos gráficos da internet e músicas de diferentes estilos. Miguel Soares é, entre os artistas da sua geração, um dos que expôs mais cedo a título individual e que conta no seu currículo com maior número de exposições individuais: seis ao todo, cinco na Galeria Monumental (1991, 1992, 1994, 1996 e 2000) e uma, com carácter retrospectivo, na sede da Associação Nacional de Jovens Empresários, em Faro, em 1996.
Paralelamente, foi presença assídua em exposições estratégicas na afirmação da geração a que pertence, com destaque para “Independent Worm Saloon” (Sociedade Nacional de Belas-Artes, Lisboa, 1994), “Wallmate” (Cisterna da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 1995), “Greenhouse Display”, “Jamba”, ou “O império contra-ataca” (Galeria Zé dos Bois, Lisboa, e La Capella, Barcelona, 1998). Ainda no capítulo das exposições colectivas, organizadas ou não segundo uma lógica de afinidades e cumplicidades geracionais, vale a pena referir também “Faltam Nove para 2000″ (Galeria da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, 1991), “20000 minutos de arte no Técnico” (Instituto Superior Técnico, Lisboa, 1994), “Inter@ctividades” (Palácio Galveias, Lisboa, 1997), “Biovoid” (Sala do Veado, 1998), “Observatório”, “Espaço 1999″, “Air Portugal” (”Bienal de Londres”, Shoreditch Town Hall, Londres, 2000), “Gotofrisco” (Southern Exposure, Sister Spaces, Galeria ZDB, São Francisco, 2000), “Comunicantes/Contaminantes” (SNBA, 2000), “Videonica” (Galeria Fernando Santos, Porto, 2001), “Electric House” (”WC Container”, Artes em Partes, Porto, 2001) e “321m2″. Pontualmente, interveio como comissário, ao lado de Alexandre Estrela (”Wallmate”), e como organizador, ao lado de João Simões (”Air Portugal”).
“Slow Motion” apresenta uma retrospectiva do trabalho de Miguel Soares com recurso ao vídeo. Na galeria da ESTGAD, são alternadas, numa projecção, duas obras relacionadas com o universo dos jogos de computador: Your Mission is a Failure, que pôde ser vista na Galeria Monumental, em 1996, assim como nas colectivas “Inter@actividades”, numa versão substancialmente diferente, e “Papel de Parede”, no Centro de Arte de São João da Madeira, ambas em 1997; e Barney Online, mostrada, em 1998, nas colectivas “Biovoid” e “Observatório”. Ainda na Galeria da ESTGAD, são alinhadas, numa segunda projecção, as seguintes peças de animação 3d: Time for Space, apresentada já por quatro vezes, primeiro na exposição individual de 2000, depois nas colectivas “Gotofrisco”, “Air Portugal” e “Videonica”; Archibunker Associates, integrada em “Comunicantes/Contaminantes”; e GT, vídeo inédito realizado a partir de uma sequência de imagens que fez parte da peça Play/Pause do grupo Pogo Teatro (Lux, Lisboa, 2001). No espaço da Rua do Hemiciclo, são apresentadas três obras recentes, duas delas inéditas: Untitled (two), já mostrada na Bienal de Faro, no ano passado, Expecting to Fly e Fire!.
Your Mission is a Failure 1996 Vídeo, som, cor, 25′
Tanto as imagens como a banda sonora desta obra são apropriadas de jogos bélicos de computador, respectivamente, MacWarrior2 e Command and Conquer. A fragmentação e colagem de imagens e sons numa sequência não linear, a neutralização da dimensão lúdica inerente aos jogos, a passagem do ambiente do computador para a parede do espaço de exposições, e a mudança de escala das imagens, projectadas em grande dimensão – tudo isso contribui para definir o sentido da obra e configurar as experiências da sua recepção. Ao colocar sobre a parede em que incide a projecção uma caixa de luz cujo ritmo é determinado pela banda sonora, Miguel Soares reforça ainda mais a estranheza da peça, ao mesmo tempo que sublinha a importância decisiva do som na definição do ambiente misterioso e ameaçador que a caracteriza.
Barney Online, Slipgate Remix 1997 Vídeo, cor, som, 6′32”
Em Barney Online, somos submetidos a uma catadupa de imagens e sons violentos que reconhecemos como sendo extraídos de um desses jogos de computador em que, para sobreviver, o personagem/jogador tem de aniquilar sucessivos inimigos que se atravessam no seu caminho ao longo de um bunker labiríntico. Trata-se da montagem de excertos de performances virtuais de um personagem (Barney) que o artista incarnou, durante alguns anos, no jogo de internet Quake Team Fortress, enquanto membro destacado de um dos numerosos clãs (5Q), o maior e mais antigo no nosso país, que em todo o mundo se dedicam diariamente a esse jogo, observando cada um regras próprias de admissão, organização e funcionamento. As mensagens sumárias que desfilam nas bandas superior e inferior das imagens fornecem pistas adicionais sobre a natureza dos acontecimentos em que o artista/jogador foi protagonista (e com que o espectador se confronta a posteriori), mas não esclarecem muitos dos aspectos envolvidos no jogo, cujas especificidades só são inteiramente acessíveis a iniciados. A descontextualização das imagens e dos sons passa aqui, também, pela dissociação relativamente à rede de interacção (que implica a criação de laços afectivos) em que cada jogador está inserido, ou seja, pela perda dos sentimentos de emulação e de grupo que estão directamente implicados na prática do jogo. O que se impõe ao espectador é, em consequência, o fluxo hipnótico de um espectáculo de violência codificada.
Time for Space 2000 Projecção vídeo de animação 3d, som, cor, 5′ (loop)
Texto: João Simões
Voz: Lula Pena e João Simões
Design de som: Ari de Cravalho
Música: Combustile Edison e Funki Porcini
Numa sociedade situada num futuro longínquo, as promessas de felicidade vêm embaladas com as imagens e os sons da publicidade: imagens de discos voadores sobrevoando mares e cruzando o universo são acompanhadas de música xaroposa e da leitura de um texto que anuncia viagens maravilhosas à descoberta de mundos desconhecidos. Como se percebe no final, a troca da voz feminina pela voz masculina marca a passagem de uma campanha de promoção de viagens a uma campanha de recrutamento militar. A ilusão de aventura e liberdade convive com o pesadelo de uma sociedade ditatorial orientada para o controlo dos indivíduos.
Archibunk3r Associates 2000 Projecção vídeo de animação 3d, cor, som, 7′50”
Design de som: Ari de Carvalho
Archibunker Associates constitui uma espécie de catálogo de protótipos arquitectónicos do futuro. Um sentimento de melancolia, em grande medida transmitido pela música, habita estas imagens de arquitecturas idealizadas, não se sabendo ao certo a que se aplica o sentimento de perda – se a um mundo que desapareceu, o da cidade como espaço de sociabilidades e o da experiência da natureza como realidade tangível, se a uma sociedade utópica em que o avanço tecnológico é factor de bem-estar.
GT 2001 Projecção vídeo de animação 3d, cor, som, 4′
Música: Roberto Musci & Giovanni Venosta
Para este trabalho, Miguel Soares inspirou-se no jogo de computador Interstate 76, relacionado com corridas de automóveis entre bandos rivais, no qual a voz de um personagem, chamado Stampide, declama poemas sobre a estrada. Recorrendo, como nas peças anteriores, a programas de animação em três dimensões para a construção dos ambientes e das figuras, o artista conta a história muito simples de três carros que dialogam entre si durante o percurso que os leva ao encontro de uma rapariga. Cada vez que Stampede debita um dos seus poemas, é simulada a passagem da imagem em três dimensões a imagem em película de cinema.
Untitled (two) 1999 Vídeo, cor, som, 6′50”
Música: Tim Buckley
Expecting to Fly 1999-2001 Vídeo, cor, som, 3′40”
Música: Buffalo Springfield
Untitled (fire) 1999-2001 Vídeo, cor, som, 2′54”
Da janela de sua casa, segurando a câmara de vídeo na mão, Miguel Soares registou situações violentas que vieram sobressaltar noites passadas frente ao computador: a agressão entre um casal; um carro capotado na avenida deserta, que surpreende uma pessoa durante o seu jogging matinal; e um homem que tenta desesperadamente, e em vão, apagar um incêndio. Com base nestes registos, em tudo semelhantes aos vídeos amadores que as televisões exibem para dar conta de acontecimentos chocantes, o artista realiza três obras em que a crueza da realidade se abre à ficção e ao delírio poético.
Miguel Wandschneider